15.12.08

um pequeno corpo grande

desenharam-me a silhueta num papel de cenário. com mil cuidados, garantindo que iria ficar o mais perfeito e parecido possível com aquilo que sou. enquanto a mão contornava o meu perfil, pensava em como seria o meu corpo ali marcado, deitado. levantei-me cheia de expectativas.
"oh!"
surpreendentemente, apesar de toda a vida ter sido assim, senti-me incrivelmente baixinha. pela primeira vez, olhei-me de cima, deitada no chão e percebi o espaço que ocupo quando me deito. esta sensação foi espantosa porque me deu a sensação de que sou maior do que o meu espaço corporal. de que o meu corpo tem uma projecção maior do que aquela que acaba aqui no limite da minha pele. que afinal me sinto grande, apesar de pequena.
devíamos todos, de tempos a tempos, ter esta maravilhosa sensação de que somos maiores do que pensamos, de que ocupamos mais espaço do que o nosso corpo limita.
"ando sem tempanada e com tudo empanado"
(ao jantar com a x.)

26.11.08

o natal está a chegar

todos os anos gosto de ir ver as luzes de natal à baixa de lisboa. não é qualquer tipo de tradição de infância, mas é um gosto que tenho. as luzes podem tornar-se um elemento muito bonito numa cidade. há anos em que fico fascinada com algumas iluminações. pela maneira como complentam os edifícios, como se integram no espaço de praça, rua, avenida. como marcam o perfil das copas e dos troncos das àrvores. como dão brilho ao que sempre lá está.

este ano ouvi dizer que já tinham acendido as luzes e decidi, no fim do dia, dar a volta pelo outro lado e passar por lá. não tinha grandes expectativas porque nos últimos anos não me têm surpreendido muito... mas não estava à espera do terror que me esperava na praça do comércio e no rossio. não consigo descrever o que vi. um monte de elementos desconexos de várias instituições e um verdadeiro mamarracho no centro da praça que não se percebe se é a casa do duendes do pai natal ou uma loja de prendas.


tenho saudades da cidade bem iluminada. simples, mas bonita.
os grandes volumes não me encantam. e não me é importante saber quem os promoveu. até é despublicidade.

25.11.08

frriiiioo

um friozinho entra pelos ossos, enregela os pés, as mãos e começa a tentar propagar-se pelo corpo. a falta de luvas leva as mãos aos bolsos, as meias insuficientes levam os pés a abanar. mas o frio continua e o corpo não resiste a encolher-se. vem o autocarro salvar-nos de uma situaão que parece impossível de sustentar por mais tempo. e quanto tempo se aguentaria ali?

6.11.08

a cabeça cansada não deixa de pensar que o coração está leve.
o coração leve tenta dizer à cabeça cansada que valeu a pena o dia e merece agora o descanso.
ambos dizem ao sistema respiratório que funcione calmamente e repire fundo.

5.11.08

há dias V



há dias em que o mundo se organiza de uma outra maneira

e voltamos a acreditar que pode sempre ser melhor.

2.11.08

há dias IV

"Há dias em que me levanto com uma esperança demencial, momentos em que sinto que as possibilidades de uma vida mais humana estão ao alcance das nossas mãos. Hoje é um desses dias."

Ernesto Sabato, Resistir

17.10.08

Irritações

Descobri que quando estamos proibidos de determinados hábitos que temos e gostamos e nos servem, muitas vezes, de compensação no fim de um dia de trabalho, no fim de uma reunião tensa, num momento de solidão, num momento de convívio ou qualquer outro em que busquemos o prazer... Descobri que, quando estamos proibidos dessas coisas, o melhor é assumirmos para nós mesmos e para os outros que se está irritado e, sim, não havia razão para tanta cabeça perdida e tanta falsa argumentação, mas ainda não se arranjou uma outra solução que não elevar a voz e fazer movimentos frenéticos para compensar essas coisas de que estamos proibidos e provavelmente nos acalmariam e, por favor, que nos desculpem.

15.10.08

passear com as crianças

da minha vida fazem parte muitas crianças. aquelas com quem trabalho todos os dias, aquelas com quem já trabalhei, os primos, os "sobrinhos", aquelas que encontro por aí, a minha própria infância cheia de outras crianças. faz parte dessa vida de criança uma vontade louca de movimento. de correr. de descobrir o que existe por aí . de fazer experiências. de ir, aos poucos, saindo do colo e desatar a andar e a ver. faz parte dessa vida o "fugir", o que querer saber o que está para além, mesmo que alguém tenha dito para não ir. faz parte a curiosidade. faz parte não querer andar sempre ao pé dos pais e ir ver o que está na outra prateleira do supermercado. e faz parte da vida dos adultos que as têm consigo usar o corpo - braços, pernas, tronco, cabeça, voz - para as fazer voltar quando é necessário. para encorajar as descobertas. para as fazer sentir que, mesmo indo mais além, onde não queriam que elas fossem, o seu corpo está sempre lá para as receber. faz parte uma confiança que vai nascendo, que se vai conquistando, que ambos os mundos estão lá. vai-se mais além mas não se foge. deixa-se ir, mas não se desliga. uma distância certa entre os corpos.
como é que um braço ou uma voz não chegam para passear com uma criança?
numa livraria de um centro comercial, um fina senhora passeava hoje a sua filha como quem passeia o seu cão. o meu vizinho do segundo andar tem uma trela fisionomicamente igual à que a menina trazia à volta do tronco. os meus olhos não conseguiam largar aquela imagem. uma trela... não sei se é este o termo usado para aquele objecto que ligava a senhora à menina, mas é o termo que consigo usar por ter um vizinho que usa um objecto igual para o seu cão. quando a menina se voltou de costas, apareceu a marca que produziu o objecto. pré-natal. a famosa marca de produtos para a infância.
a minha cabeça veio embora com essa imagem gravada. uma imensidão de sentimentos revoltos. a certeza de que o corpo tem de chegar para esta educação de passear com os filhos. com os filhos. com as crianças. não se passeiam as crianças. passeia-se com elas. dá-se-lhes as mãos. dá-se-lhes o colo. dá-se o corpo. dá-se-lhes a oportunidade de sentir que é bom tocar nos outros e senti-los por perto. dá-se-lhes a certeza que não importa onde estejam, é seguro, porque também lá estamos - com os nossos braços para as salvar de perigos, com a nossa voz para as chamar se forem longe demais.
não resisti a procurar pré-natal no google. um site muito bem organizado com imensos artigos sobre a infância que, com certeza, hão-de ajudar muitas mães em apuros. não encontrei as trelas, mas encontrei a filosofia. deu-me voltas ao estômago pensar que uma cambada de gente anda a ter reuniões para decidir que o melhor para solucionar os problemas das mães que não conseguem passear com os seus filhos é criar um objecto que as faça passeá-los como suas donas.
a pré-natal esteve em baixa.
aquela senhora esteve baixíssima.
e eu agradeci muito ter nascido na província e terem-me deixado brincar na rua, ir sozinha da escola para a hora de almoço. terem passeado comigo.
os tempos talvez estejam diferentes, mas havemos de lutar para podermos continuar a passear com as crianças.

8.10.08

hora

há uma hora do dia caótica para conduzir em lisboa. hora em que dá vontade de atropelar tudo o que aparece à frente e ir directamente aos senhores responsáveis e passar-lhes o carro para as mãos e dizer-lhes: "ora experimente lá ir para casa sem ficar com os nervos em franja!"

à hora do grande regresso a casa, a partir das seis e até para além das sete e meia, hora de lusco-fusco e anoitecer, os candeeiros da rua estão ainda apagados na maior parte das ruas do trajecto que faço ao fim do dia.
é uma aventura regressar a casa.
as ruas mais escuras ficam cheias de sombras estranhas que não se sabe se é uma bicicleta que aí vem, um peão que passeia o cão ou uma betoneira mal estacionada. os olhos deixam-se ofuscar com os carros da frente e, na falta de outra luz que os faça recuperar, passam os metros seguintes numa verdadeira obra de perspicácia a tentar voltar a ver no escuro, evitando feridos e amolgadelas e tentando distinguir se, de facto, é uma bcicleta, um cão ou uma betoneira. o corpo começa a ficar enrigecido pelo esforço acrescido da cabeça e dos olhos e pelo medo de não estar a ver tudo nem a medir bem os espaços. os carros mal estacionados que, à luz do dia são aborrecidos, tornam-se insuportáveis. os quatro piscas são um desespero de luz. o corpo, enrigecido como está, demora mais a fazer manobras. procurar estacionamento, se estiver difícil, torna-se desesperante. a boca começa a ganhar vontade de dizer palavrões...
o que vale é que, nesta altura, chego a casa.
uf!
é uma hora pequena, mas que se torna imensamente longa.

vou informar os responsáveis que, apesar dos relógios universais não o saberem, já saímos do verão e os dias estão mais pequenos e os candeeiros da rua deviam acender mais cedo. evita-se assim as más disposições de fim de dia.
(que coisa! será que eles não andam de carro a esta hora?)

30.9.08

Preciso Me Encontrar




Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer,
Ver as águas dos rios correr,
Ouvir os pássaros cantar,
Eu quero nascer, quero viver

Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar,
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar

Quero assistir ao sol nascer,
Ver as águas dos rios correr,
Ouvir os pássaros cantar,
Eu quero nascer, quero viver

Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Cartola

22.9.08

glória, vitória, felicidade, maria da luz, prazeres. os pais das mulheres com estes nomes devem ser pessoas optimistas, que crêem no mundo e na vida. já os pais da piedade e da maria das dores...

17.9.08

verões

há verões que são mais compridos que outros e verões que não queremos que acabem nunca e verões que já deviam ter acabado e verões que nos enchem ou preenchem o coração e verões assim e assado e verões em que chove e verões em que faz um calor insuportável e verões de praia e verões de serra e verões com escaldões e verões com bronzeados lindos de morrer e verões com caracóis e verões com cervejinhas e verões sem piadinha nenhuma e verões com aquele pôr do sol e verões que mais valia não terem acontecido e verões em que nos apaixonamos loucamente e verões que nem são bem verões... verões... verões... verões... verões
há verões que são assim um turbilhão.

12.8.08

há dias III

há dias em que os tempos se cruzam
e se tornam num novo tempo
e nos fazem sentir saudades
de ontem e de anteontem e de tresantontem.
Miguel Esteves Cardoso

6.8.08

relíquia...


...qualquer coisa, muito preciosa, que se guarda com carinho e faz parte de um passado.
...qualquer coisa que, em tempos, se viveu intensamente e quase se acreditou que podia alterar-nos o percurso de vida.
...qualquer coisa que se desenterra um dia e nos traz memórias de dias em cheio e nos embaraça por nos ser relíquia. mas que queremos que o continue a ser e que fique guardada no baú para lá irmos de vez em quando recordar as emoções de outras alturas.
aqui, uma das relíquias dos meus 12 anos, partilhada há poucos dias, quase com a sensação de que, sim, às vezes o tempo volta atrás.

24.7.08

idiomas

sempre me adaptei muito bem às línguas dos países que visito.
hoje, em barcelona, consegui a verdadeira frase poliglota...

"yo hablo italiano, español e português tuto mistorato."

o mais importante é que me perceberam.

22.7.08





tempos de enfado...





17.7.08


o dia em que trouxe ao meu irmão uma t-shirt vinda directamente da barriga da minha mãe.
É loucura
É loucura estarmos todos
Juntos na mesma fogueira que arde
É loucura a ternura, este sonho, esta tarde
É loucura estarmos juntos
Todos à volta da mesma alegria
É loucura a ternura, esta noite, este dia
Ninguém sabe o que o sonho alcança
Quando se vive amando
Ninguém sabe o que sonha a criança
Quando sorri sonhando
Quem nos dera que nunca surgisse
Esta tristeza de hoje
Quem nos dera que nunca fugisse
Esta fogueira que foge
Algum dia na vida amanhã
Quando a rotina venha
Não nos falte esta chama, esta irmã
Esta fogueira, esta lenha.



Hélder Ribeiro

16.7.08

tempos sem tempinho nenhum...

1.7.08

dos que moram na rua

tenho desde sempre uma relação indefinida com as pessoas que moram na rua. um misto de curiosidade pela vida que têm e de necessidade de me manter afastada. há umas que me suscitam uma atenção especial e que ficam gravadas com algum carinho. que se tornam um equilíbrio no meu dia-a-dia e se transformam em parte integante da minha passagem pelas ruas quotidianas.
em aveiro, havia um senhor que anunciava o fim do mês e arranjava aí a solução para o seu pedido de esmola. eu e o meu pai fartávamo-nos de rir quando ele vinha com a sua lengalenga "é fim do mês, está na hora de pagar." fazia-se acompanhar de um caderno e um lápis na orelha que passava para a mão durante a lengalenga. vestia-se com um velho blazer e uma gravata e era careca. ele fazia andar o tempo. ele trazia a rotina do tempo.
em évora, havia um senhor de longas barbas brancas que falava sozinho e lia o jornal na praça do giraldo. alguns dos meus amigos cumprimentavam-no como amigo também. era sempre gentil com as pessoas e tinha um aspecto bonito.
em lisboa, perto da sé havia um rapaz/senhor que parecia um homem estátua. estava sempre sentado em cima de cartões velhos, vestia umas calças puxadas até cima com suspensórios e cobria a cabeça com chapéus, gorros e boinas. estava sempre imóvel, com uma perna dobrada na qual encostava o cotovelo para poder esticar a mão em forma de pedido. o seu olhar estava sempre mão. e eu via-o sempre nesta posição.
hoje, vi um novo homem. destes que me despertam a curiosidade.
num dia de calor como o de hoje, ele estava deitado na entrada de um prédio, vestido com manga comprida e cobertores a tapá-lo. tinha à beira da sua cabeça uma pilha de livros antigos e os olhos presos ao livro que tinha aberto nas mãos. estava muito sujo, o que normalmente me leva a não conseguir reparar nos pormenores, mas os livros fizeram demorar a minha passagem. fiquei curiosa com os títulos. espero que ele lá esteja quando lá voltar para ver de soslaio os títulos.

30.6.08

fins de tarde

servem para aconchegarmos o dia.
para termos tempo de parar e pensar.
para revivermos o que já passou, saboreando ou deixando na beirinha do prato, e projectarmos o que queremos viver.
criam uma abertura para nos encontrarmos e nos falarmos.
muitas vezes, servem para termos ideias luminosas, curiosas, engenhosas.
servem para o silêncio e a contemplação.
os fins de tarde são imprescindíveis e devem ser tratados com bastante respeito e atenção.
desprezar um fim de tarde é um erro desmedido.
podemos até pensar que o recuperamos no dia seguinte, mas o que passou desprezado está já perdido e é irrecuperável.

os fins de tarde podem e devem ser vividos de diversas formas.
não há regras.
cada um constrói os seus próprios fins de tarde.
a única obrigatoriedade dos fins de tarde
é aproveitar para se
estar de bem com a vida.

21.6.08

"a pessoa de que vocês falam nem pareço ser eu. porque me fica tanto por fazer. sei que outros o poderão fazer, mas eu deixo por fazer. estou-vos muito agradecida pelas palavras."
Matilde Rosa Araújo, ontem, numa homenagem na SPA, ao fazer 87 anos.

18.6.08


estou aqui
já estava aqui
e vou estar aqui

às vezes vou ali
outras vezes acolá
saio
ando por aí


estou aqui a andar por aí



11.6.08

nos dias em que o cansaço nos vence, em que as nossas palavras saem atordoadas, quase mudas, em que parece que ninguém compreendeu as nossas intenções e definitivamente nos sentimos no sítio errado, comamos caracóis com os amigos e brindemos às nossas vitórias pessoais. digamos alguns palavrões para amainar as zangas, falemos da vitória de portugal e de como a metereologia é falível. lutemos para que o cansaço desapareça e a cabeça se sinta assim mais desanuviada.
há dias do caraças!


29.5.08

não-primavera

quando ainda dormimos com um cobertor por cima do edredon, não estamos em plena primavera, pois não?
quando o frio nos demove de ir à feira do livro, não estamos em plena primavera, pois não?
quando as t-shirts ainda se escondem debaixo de uma camisolinha e um blusão, não estamos em plena primavera, pois não?
quando não sentimos o calor a tocar-nos a pele um dia inteiro durante quinze dias, não estamos em plena primavera, pois não?
quando abrimos a persiana de manhã e está um sol bonito e saímos à rua e já enublou, não estamos em plena primavera, pois não?
quando não conseguimos usufruir das esplanadas, dos jardins e dos miradouros, não estamos em plena primavera, pois não?
quando os corpos ainda se aconchegam a si próprios ao caminhar, não estamos na primavera, pois não?
quando nos começamos a aborrecer de estar em casa, não estamos em plena primavera, pois não?

["não, amiga. este ano a primavera existe aos bocadinhos." ]

que aborrecimento.

25.5.08

medo do escuro


sempre tive um medo terrível do escuro. no escuro viviam mãos atrás de paredes ou debaixo de camas, prontas a agarrar-me nas pernas e nos braços, mal sentissem a minha passagem. no escuro viviam sons irreconhecíveis que se transformavam em monstros ameaçadores. no escuro vivia um desconhecido muito grande que me assustava e que eu tentava nunca conhecer. tinha dele uma imagem tenebrosa.
o meu corpo ganhava uma vida própria. ou corria desalmadamente em direcção à luz e só aí podia respirar ou tornava-se rígido incapaz de se movimentar.
havia dois pequenos momentos que se tornavam para mim uma verdadeira aventura contra o medo. subir ao sótão para arrumar os brinquedos que tinha deixado desarrumados do dia e ir despejar os restos do jantar no galinheiro. eram para mim verdadeiras lutas contra a fantasia. as escadas tornavam-se gigantes. demorava muito tempo a subi-las, com o coração numa corrida louca, as pernas tremeliques e os olhos presos naquele rectângulo preto que me esperava lá em cima. os olhos não podiam sair dali não fosse eu ser apanhada de surpresa pelo tal desconhecido ou pelos seus cúmplices. quando lá chegava o corpo acelarava os movimentos e a mão precipitava-se para o interruptor. com luz era diferente. o medo ainda tinha espaço, mas eu podia ver tudo. quando acabava a tarefa de arrumação, apagava as luzes e corria a toda a velocidade, escadas abaixo, até encontrar alguém. a minha professora da escola dizia que eu devia era subir as escadas a fazer muito barulho com os pés, para assustar o escuro e os monstros que lá morassem. com o medo, iam embora de certeza. tentei esta estratégia algumas vezes, mas a verdade é que o medo continuava a sobrepôr-se à certeza de que eles iriam embora com o som dos meus pés. já com as galinhas era diferente. havia apenas uma luz no pátio e, para chegar ao galinheiro, tinha de atravessar o quintal, cheio de frutas e hortaliças prontas a atacar-me ou a esconder animais carnívoros esfaimados. nesse percurso corria. corria o mais depressa que conseguia. tenho ideia de sempre ter desempenhado mal esta tarefa. a cabeça quase não pensava nela porque estava ocupada a fazer correr o corpo completamente imerso no medo do escuro.

a luz do corredor ficou acesa até muito tarde para eu dormir e, quando ganhei vergonha, passei a garantir que não era a última a deitar-me para, ao menos, sentir que havia luz lá fora.
no quarto, à noite, deixava apenas o nariz e os olhos de fora dos cobertores. e ficava muito quieta quando um ruído disparava o medo em mim. a respiração parava, mexia os olhos de um lado para o outro para tentar ver na escuridão e o corpo ficava incrivelmente semelhante a uma pedra.


eram sensações tão fortes. todo o meu corpo e a minha cabeça se concentravam no escuro, nas imensas possibilidades assustadoras que podiam aparecer repentinamente. tenho uma memória muito física das corridas e do som do coração.


curiosamente o medo não cresceu como eu. foi-se tornando pequenino. foi deixando de inventar monstros e outros seres que tais. foi perdendo a sua força. e eu fui criando novas formas de o pôr a correr a ele.

mas sei que ele ainda cá mora e que está sempre pronto a fazer-me correr ou petrificar-me.
(ontem acendi todas a luzes de casa)

17.5.08

De Paris com Amor

"Não conto o tempo, não discuto o tempo, não registo o tempo, não brinco com o tempo, não abraço o tempo, não contesto o tempo, não trato mal o tempo, não diabolizo o tempo. Agarro o tempo que o tempo me oferece, falo no tempo que faço meu, dialogo com os tempos que agendo, não escolho tempos, ofereço-me ao tempo para que o tempo me permita ter tempo para disponibilizar o tempo necessário para enviar esta mensagem e outras. Espero que a recebas dentro do teu tempo. Que tal o tempo por aí?"

Alcino Cartaxo, 16 de Maio de 2008
quem sai aos seus não degenera

13.5.08

Eusébio

Não sei quase nada sobre o Eusébio nem sobre a sua vida futebolística. Tenho imagens dele a preto e branco a correr pelo campo e de uma toalha e um zumbido nos ouvidos de que ele foi grande jogador e é grande benfiquista. Fora isso, não tenho uma opinião formada sobre ele nesta área.
No entanto, hoje, numa grande fila de trânsito, daquelas em que é difícil uma pessoa encaixar o seu carro se não for bruta, tive o privilégio de ter sido convidada a entrar na fila pelo próprio. Ele mesmo, Eusébio, ao fim de alguns carros de espera e algumas tentativas, assentiu com a cabeça a minha entrada. Descobri o Eusébio condutor. A minha opinião sobre este Eusébio é bem mais segura que a do futebolista. Sim, ele é um bom automobilista de cidade.

10.5.08

bolinhos da sorte

"Follow your aim, self-consciousness will show you how."
"Others will provide you a wonderful journey."

6.5.08

experiência de desculpa

peço a todos os leitores as minhas desculpas pelo amarelo e o bold repentinos do último post.
foi experiência. só agora a testei. negativo!

5.5.08

de vez em quando apetece-me chover.
quando as nuvens são pesadas e não há meio de abrirem definitivamente, fica aquele tempo trovoada dentro de mim e, então, apetece-me mesmo chover. apetece-me chover para mandar as nuvens embora. apetece-me chover para sentir o cheiro da terra molhada e para a natureza desatar a crescer. apetece-me chover para as ideias serem mais claras à luz do sol e a cabeça ter mais espaço para mais ideias. apetece-me chover para desanuviar o céu e eu deixar de me sentir abafada.
choverei?

25.4.08

somos tantos e às tantas de tantos sermos não conseguimos entender-nos.

24.4.08

tempálmoçar

há palavras que se unem para criar outras palavras, em que o mesmo sentido continua a existir num outro som. é fabuloso. dá conversas maravilhosas e serões de puro riso.

ele não tem tempálmoçar, coitado.
e elas as duas riem-se.

18.4.08

carta

querida amiga,

vejo que tens o quarto arrumado há duas semanas, que tens feito a cama todos os dias e não fica muita roupa acumulada lá no cantinho. também já reparei que não tens deixado os sapatos debaixo da cama, nem as meias por dobrar - e bem sei que não gostas nada desta tarefa.
estou muito orgulhosa.
era de continuar, se conseguisses resistir ao teu gosto pelo caos e à tua preguiça para a arrumação doméstica.

parabéns!

17.4.08

chove

porque é que sempre que chove a cântaros há pessoas a dizer que é o fim do mundo?
chove sim. chove muito. chove a bandeiras despregadas. chove como poucos. está uma chuva nada molha tolos. molha todos. molha mesmo. de certeza que toda a gente hoje se molhou - um bocadinho que fosse. não pára. começou às três e meia da tarde e ainda não parou. e não vai parar segundo o instituto de meterologia. também está vento. enerva um bocado. tentar caminhar e segurar no guarda-chuva e proteger um amigo e lidar com a calçada portuguesa e os jactos que nos atacam as pernas das poças onde deslizam os condutores. e conduzir também é enervante porque os vidros embaciam e os limpa-pára-brisas não dão vazão aos litros de água que lhes caem em cima e molha-se sem querer o peão que também já lida com a sua enervação....
mas, vá lá ver, o mundo não vai acabar. não é o fim do mundo. é só um dia chato. um dia de estar em casa - ainda que se não possa. "em abril, águas mil", não é? não sabemos já todos isso?
voltemos a gostar de chapinhar nas poças e é só chegar a casa e tomar um banho quente.

15.4.08

"é com o tempo que os tempos se encontram"

13.4.08

buscas

busca-se a simplicidade. busca-se a descomplicação. busca-se o simples prazer de ir indo. de ver e cheirar e deixar o mundo entrar e percorrer o corpo interior. busca-se a verdade. a mais pura honestidade connosco próprios. busca-se as soleiras das portas e as varandas com vista desafogada para conversas sobre a vida. sobre a vida mundana e a espiritual. busca-se o outro. busca-se a partilha da vida. busca-se a calma no fim do dia. busca-se o caminho diferente todos os dias. busca-se o amor. busca-se um lugar ao sol no mundo, onde chova de vez em quando para se sentir o cheiro da terra molhada.

9.4.08

E por vezes


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira
E por vezes as noites duram meses...

6.4.08

"A viagem na cabeça"

"Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com a distância exposta para viagens aos países incógnitos, ou supostos, ou somente impossíveis."

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

2.4.08

estendais



dos estendais que via da janela da cozinha da casa do alto de santo amaro era este que mais me surpreendia. estava sempre arrumado. cromaticamente organizado. sempre bonito. as roupas sempre com um aspecto muito claro, muito calmo...
aquele estendal trazia-me uma sensação boa.
as pessoas que passeavam na marquise eram para mim uma curiosidade. sabia pelas roupas que tinham um bebé em casa. sabia pelas cores que costumavam usar que gostavam muito do branco. sabia que escolhiam luzes amarelas para os candeeiros, que, à noite, davam aquele tom quentinho à marquise.

sempre reparei muito nos estendais das casas. mas este foi aquele que mais encanto me causou.

ontem fechei a porta desta casa onde já não vivia há um ano. deixei também o estendal.

28.3.08

amizades eternas


até há bem pouco tempo as amizades pareciam para sempre. aliás, muitas coisas no mundo e na vida pareciam eternas. o mundo era imutável e as pessoas e as vidas não iam desaparecer ou transformar-se. podia eternamente contar que estariam ali à mão ou ao pé.
é uma grande descoberta, esta. o momento em que começamos a saber que os amigos vão indo embora e nós mesmos vamos querendo mundos diferentes.
a mim custou-me muito saber que, afinal, as pessoas morrem mesmo e nos desaparecem do dia-a-dia e já não lhes podemos ver o rosto ou ouvir a voz quando temos saudades delas. também me custou saber que a distância pode criar novos rumos e deixar de nos dar a oportunidade de visitar aqueles confortos que tínhamos em circunstâncias muito específicas. a clara consciência de que os momentos são mesmo únicos e irrepetíveis.

e, no entanto, ficam ainda amizades eternas.
há umas quantas que preservo e cuido com muito carinho. que por muitas voltas que o mundo dê, quero continuar a ter junto a mim. há outras que hão-de aparecer. guardo espaço para elas.

acho bonita esta ideia... de estarmos sempre a receber pessoas. as que vêm com malas, as que estão de passagem, as que deixam marcas, as que nunca mais voltam...

enchemo-no de pessoas. é incrível!

18.3.08

memórias corporais

são instantes em que o corpo vive ao de leve um bocadinho de uma história já vivida ou de um movimento já feito e se arrepia, se emociona, se deixa viver de novo o que estava arrumadinho ou esquecido. um misto de prazer e dor. às vezes, uma vontade louca de fixar o tempo e ficar nele o suficiente para saciar a saudade.

9.3.08

tempo

não sei se o tempo não me chega ou se sou eu que não chego para o tempo.

7.3.08

pessoas-parede

as pessoas-parede têm sempre um ar sisudo, cheio de certezas, e trazem consigo uma mala cheia de insultos e palavras ofensivas para manter a sua estrutura de pé. não me parecem muitos felizes, estas pessoas-parede. falta-lhes um coração a bater. apesar de serem pessoas, convencem-se a si próprias de que são mais parede. o resultado é uma amargura na voz, um corpo sempre hirto e uma constante insatisfação. têm alguns momentos de pessoa em que se deixam penetrar por momentos bonitos e podemos ver-lhes um sorriso. é aproveitá-lo. é raro.
(destesto estar com pessoas-parede. ter à força de conviver com elas e tentar criar projectos comuns.)

11.2.08

há dias II

há dias em que os segredos saem de dentro de nós e fazem pontes com os outros.
esses são os dias felizes de viver.

7.2.08

há dias

há dias em que os segredos rebentam no nosso coração.
esses são os dias difíceis de viver.

5.2.08

início da época balnear



dos vários sacos de praia e armários vieram os apetrechos para levar a cabo a primeira ida à praia do ano de 2008. éramos três. levávamos connosco o essencial: os fatos de banho, saco, as bolas insufláveis e o guarda sol. estávamos já morenos e, claro, providenciámos o primeiro escaldão, clássico de um primeiro dia de praia.
saímos já tarde e fartámo-nos de andar. na esplanada da praia estava vento e muito pouco espírito veraneante. descemos à baixa. no elevador de santa justa estava agora montado o ponto de vigia do nadador salvador. a praia do grémio, cheia de gente, fez-nos procurar a tão famosa escultura de areia do teatro dona maria. molhámos as mãos nas lagoazinhas do rossio. a água estava fria. subimos. agora começávamos a encontrar gente. muita gente. bruxas, dragonballs, travestis. todos tinham decidido vir à praia - muito mal vestidos para a ocasião. depois de uma passagem pela praia do bairro, fomos, finalmente, assentar arraiais na praia da bica. aí sim, estava uma "granda onda". mergulhámos no mar de gente do bar da esquina - do qual não me lembro do nome - e viemos para as toalhas. não fora o carro do lixo, tínhamos ali ficado mais tempo.

os primeiros dias de praia do ano são inesquecíveis.

[ontem a praia estava mesmo lá e toda a cidade tinha ganho uma nova dimensão.]

2.2.08

aos reencontros

29 anos é uma idade estranha.

[a própria idade é uma coisa estranha. embora não signifique quase nada na vida diária, há momentos em que a sentimos na cabeça, no corpo e nos olhos das outras pessoas.]

29...
que número sem sentimento.

os 28 eram redondos e enfadonhos e logo à partida traziam esta minha atenção sobre o número, que não me deu espaço para pensar no que poderiam significar como idade da vida.
os 27 eram ímpar. agradava-me. tinham um significado de mudança. foi a primeira vez que pensei - mesmo que não tivesse sentido - que "agora estás mesmo mais perto dos 30". a primeira vez que me fizeram este comentário. que ouvi falar dos 30 como uma realidade a viver a curto prazo. que falei sobre o que isso é. as várias perpectivas de quem já viveu, de quem está para viver, de quem nem quer saber.
daí para trás há grandes números com significado cultural, com significado pessoal, com significado na vida...

[25. foi a minha idade preferida. idade de grandes felicidades.]

agora os 29...
intrigaram-me desde o princípio. o facto de ser ímpar agradava-me mais uma vez. mas... havia qualquer coisa de espera. de suspenso. de respiração concentrada. de procura tímida de um sentido. já não se está muito afastado dos 30, mas ainda não se chegou lá.

(...)

29. a idade dos reencontros.
era este o sentido que andava escondido para os meus 29 anos.

têm vindo pessoas, lá do fundinho do tempo, trazer-me à memória momentos esquecidos, tirar do fundo das gavetas aqueles pedacinhos de mim que guardei com muito carinho, mostrar-me como estou crescida, como mudei e não mudei.

antes dos 30, reencontrar-me no reencontro com os outros. recolocar-me na vida.
parar. respirar. olhar. pensar. continuar.

27.1.08

é tempo é tempo de aprender a ser

canto esta pequena frase desde os meus nove anos. ando pela vida com ela na cabeça. e, no entanto, descubro finalmente o seu eco dentro de mim, um sentido profundo. um aconchego.

é tempo.