1.7.08

dos que moram na rua

tenho desde sempre uma relação indefinida com as pessoas que moram na rua. um misto de curiosidade pela vida que têm e de necessidade de me manter afastada. há umas que me suscitam uma atenção especial e que ficam gravadas com algum carinho. que se tornam um equilíbrio no meu dia-a-dia e se transformam em parte integante da minha passagem pelas ruas quotidianas.
em aveiro, havia um senhor que anunciava o fim do mês e arranjava aí a solução para o seu pedido de esmola. eu e o meu pai fartávamo-nos de rir quando ele vinha com a sua lengalenga "é fim do mês, está na hora de pagar." fazia-se acompanhar de um caderno e um lápis na orelha que passava para a mão durante a lengalenga. vestia-se com um velho blazer e uma gravata e era careca. ele fazia andar o tempo. ele trazia a rotina do tempo.
em évora, havia um senhor de longas barbas brancas que falava sozinho e lia o jornal na praça do giraldo. alguns dos meus amigos cumprimentavam-no como amigo também. era sempre gentil com as pessoas e tinha um aspecto bonito.
em lisboa, perto da sé havia um rapaz/senhor que parecia um homem estátua. estava sempre sentado em cima de cartões velhos, vestia umas calças puxadas até cima com suspensórios e cobria a cabeça com chapéus, gorros e boinas. estava sempre imóvel, com uma perna dobrada na qual encostava o cotovelo para poder esticar a mão em forma de pedido. o seu olhar estava sempre mão. e eu via-o sempre nesta posição.
hoje, vi um novo homem. destes que me despertam a curiosidade.
num dia de calor como o de hoje, ele estava deitado na entrada de um prédio, vestido com manga comprida e cobertores a tapá-lo. tinha à beira da sua cabeça uma pilha de livros antigos e os olhos presos ao livro que tinha aberto nas mãos. estava muito sujo, o que normalmente me leva a não conseguir reparar nos pormenores, mas os livros fizeram demorar a minha passagem. fiquei curiosa com os títulos. espero que ele lá esteja quando lá voltar para ver de soslaio os títulos.

1 comentário:

tiagolanca disse...

anteontem vi um homem (no calor insuportável das 4 da tarde) a correr atrás de um guarda-chuva que voara para a rua. por entre os carros, no terreiro do paço, como um fantasma a cores: o homem envergava um casaco, umas três camisolas, um dois três gorros. serpenteou lentamente o trânsito e voltou a deitar-se na tenda improvisada do guarda-chuva recuperado. um esquimó no cimento das 4 da tarde, anteontem