11.5.13

sem abrigo


Um homem mora num jardim público durante dois anos. Tem apenas um cobertor vermelho e um copo de vinho alto. Tudo o resto são roupas, cartões e revistas que troca com frequência. Sente um imenso orgulho e gratidão por ter tido este lugar tão cobiçado por ele neste jardim da cidade e de não ter sido expulso à pedrada pela polícia, pelos outros homens ou um qualquer movimento de moradores. Mantém o seu sítio sempre arrumado e limpo. E durante o dia, quando todo o resto de moradores regressa ao jardim, ele sai pelas ruas da cidade. Procura histórias e comida. É isto que lhe basta para viver desde que escolheu o seu lugar no jardim e aprendeu a viver sobrevivendo. Adquiriu a qualidade de vida há tanto esperada. A garantia de escolher livremente o que quer que seja para a sua vida. Não tem obrigações, responsabilidades, pretensões. Basta-lhe esta casa.                                                                                                   
Mas um dia o jardim vai para obras.
Quando começaram os primeiros rumores sobre essa possibilidade, não fez parte dos movimentos que se opuseram e maldisseram as decisões tomadas. Não fez parte do Dia da Mocada em que homens e máquinas voltaram para trás sem conseguir iniciar a Muralha de Tapume que fecharia o jardim durante meses, para depois reabrir novinho em folha, todo arranjadinho. Tinha estado sempre lá, mas não, não tinha feito parte. Tinha assistido. Simplesmente. [E talvez agora percebesse que devia ter-se envolvido, mas na altura ele não sabia isso.] Aceita simplesmente e segue o seu caminho na noite em que fecham a Muralha definitivamente. Vai pela avenida fora preparado para escolher outros sítios provisórios e encara este tempo como uma grande viagem de férias em que os horizontes se abrem e uma quantidade imensa de histórias ficam à sua disponibilidade. Cria novos espaços durante o tempo em que espera pelo regresso ao jardim e pela primeira vez escreve postais para si próprio na ânsia de guardar este universo na sua casa. Quando finalmente regressa ao jardim, todo o espaço estava diferente. Todos os recantos que conhecia estavam descaracterizados e tipificados com os novos equipamentos de jardim que tornavam todos os espaços verdes iguais. 
Procurou o seu canto. O seu cheiro. Os restos de si naquele jardim e, pela primeira vez, se sentiu sem abrigo. 

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