15.10.08

passear com as crianças

da minha vida fazem parte muitas crianças. aquelas com quem trabalho todos os dias, aquelas com quem já trabalhei, os primos, os "sobrinhos", aquelas que encontro por aí, a minha própria infância cheia de outras crianças. faz parte dessa vida de criança uma vontade louca de movimento. de correr. de descobrir o que existe por aí . de fazer experiências. de ir, aos poucos, saindo do colo e desatar a andar e a ver. faz parte dessa vida o "fugir", o que querer saber o que está para além, mesmo que alguém tenha dito para não ir. faz parte a curiosidade. faz parte não querer andar sempre ao pé dos pais e ir ver o que está na outra prateleira do supermercado. e faz parte da vida dos adultos que as têm consigo usar o corpo - braços, pernas, tronco, cabeça, voz - para as fazer voltar quando é necessário. para encorajar as descobertas. para as fazer sentir que, mesmo indo mais além, onde não queriam que elas fossem, o seu corpo está sempre lá para as receber. faz parte uma confiança que vai nascendo, que se vai conquistando, que ambos os mundos estão lá. vai-se mais além mas não se foge. deixa-se ir, mas não se desliga. uma distância certa entre os corpos.
como é que um braço ou uma voz não chegam para passear com uma criança?
numa livraria de um centro comercial, um fina senhora passeava hoje a sua filha como quem passeia o seu cão. o meu vizinho do segundo andar tem uma trela fisionomicamente igual à que a menina trazia à volta do tronco. os meus olhos não conseguiam largar aquela imagem. uma trela... não sei se é este o termo usado para aquele objecto que ligava a senhora à menina, mas é o termo que consigo usar por ter um vizinho que usa um objecto igual para o seu cão. quando a menina se voltou de costas, apareceu a marca que produziu o objecto. pré-natal. a famosa marca de produtos para a infância.
a minha cabeça veio embora com essa imagem gravada. uma imensidão de sentimentos revoltos. a certeza de que o corpo tem de chegar para esta educação de passear com os filhos. com os filhos. com as crianças. não se passeiam as crianças. passeia-se com elas. dá-se-lhes as mãos. dá-se-lhes o colo. dá-se o corpo. dá-se-lhes a oportunidade de sentir que é bom tocar nos outros e senti-los por perto. dá-se-lhes a certeza que não importa onde estejam, é seguro, porque também lá estamos - com os nossos braços para as salvar de perigos, com a nossa voz para as chamar se forem longe demais.
não resisti a procurar pré-natal no google. um site muito bem organizado com imensos artigos sobre a infância que, com certeza, hão-de ajudar muitas mães em apuros. não encontrei as trelas, mas encontrei a filosofia. deu-me voltas ao estômago pensar que uma cambada de gente anda a ter reuniões para decidir que o melhor para solucionar os problemas das mães que não conseguem passear com os seus filhos é criar um objecto que as faça passeá-los como suas donas.
a pré-natal esteve em baixa.
aquela senhora esteve baixíssima.
e eu agradeci muito ter nascido na província e terem-me deixado brincar na rua, ir sozinha da escola para a hora de almoço. terem passeado comigo.
os tempos talvez estejam diferentes, mas havemos de lutar para podermos continuar a passear com as crianças.

6 comentários:

JM disse...

A primeira vez que vi uma criança a ser passeada com trela foi na Suíça, um país que, pelo que fui percebendo em visitas avulsas, tem mais estima pelos cães do que pelas crianças. Fiquei chocado e acreditei, optimista, que tal aberração nunca chegaria ao nosso jardim à beira mar plantado, onde, como muito bem dizes, se passeia "com as crianças". Há uns tempos, com um choque parecido com o teu, descobri que a "coisa" já cá tinha chegado. Repugna-me.
Mas não seria capaz de escrever tão bem como tu sobre a questão.

E, por falar em passear com crianças, não queres vir ver o nosso "Muna" infantil? E o outro? Estamos aqui perto, no D. Maria.
Gostava que gostasses.

amendoim disse...

O comico é que, embora eu tenha pouca sensibilidade para as crianças, qd vou passear A minha cadela (de trela), tenho pena que ela n possa ser mais livre. E ainda n perdi a esperança que um dia eu vá passear COM ela :D. Portanto, em relação a uma criança...

JoanaM disse...

Na suiça que eu conheço não se ouve perguntar na rua: queres levar?, não se vê todos os dias crianças a levar palmadas e não se ouve mães a gritar constantemente com os filhos com ar de que foi a pior coisa que lhes aconteceu, ter filhos. E vê-se muitas pessoas a passear com as crianças. Não ha lugares perfeitos, nós fazemos o nosso lugar. Para mim, esta história reflecte apenas que nós os adultos vemos as crianças como seres inferiores, incapazes de perceber e decidir... tal como os cães. E isso é assim em muitos lugares do mundo...

JM disse...

Na Suíça que eu conheci, Joana, era mais fácil levar um cão a um restaurante do que uma criança e famílias com crianças pequenas e suas expressões naturais de entusiasmo eram olhadas de lado nesses espaços.
O tempo e a pressão do envelhecimento poderá ter mudado muita coisa, mas há 18 anos atrás, quando eu vi pela primeira vez crianças com trela, na Suíça, havia mesmo um estudo de opinião que fazia manchetes de jornais acerca da preferência dos suíços pelos cães, em detrimento das crianças.

Se a relação da Suíça com as crianças (e com os cães) tiver mudado, fico muito feliz pelos suíços, novos e velhos.

E claro que não há lugares perfeitos, nem pretendia com o meu comentário anterior dar a entender que em Portugal as crianças são mais ou menos bem tratadas que no resto do mundo. O nosso estado civilizacional é o que sabemos todos, com toda a violência doméstica, os falsos brandos costumes, a ignorância e falta de formação...

Fazemos o nosso lugar, tem toda a razão.

cristina disse...

joão, talvez experimente os dois, mesmo que sem crianças. gostava de vos ver e de ver as munas.

a tua dona maria?

um beijo

JoanaM disse...

Antes cães bem tratados, que crianças mal tratadas e mal desejadas...