17.2.13

o fugitivo


Um homem corre na noite 
é uma imagem banal 
podia ser em Madrid 
ou Johanesburgo, ou em S. Paulo 
ou Budapeste, Nova Iorque 
ou Hollywood 
ou é claro em Portugal 
um homem corre na noite 
é uma imagem banal 

Porque foge? De onde vem? 
porque olha para trás inquietado? 
será soldado? vagabundo? 
criminoso? ratoneiro? 
será apenas o primeiro 
dos que vão fugir com ele? 
foge p´ra salvar a pele 
só a sua? a pele dos outros? 
a pele clara ou a escura? 
quanto tempo vai durar a sua fuga? 
quanto dura? o que espera? 
o que espera o homem- fera 
se chegar a quem o espera? 
alguém o quer? alguém se acende 
alguém o chora? 
alguém por quem ele chorou 
chorará por ele agora? 
alguém que nunca o trairá 
e se sim, onde será? 

Um homem luta contra o sangue 
que derrama 
e diz: valeu a pena? 

Que os barcos 
voltem a subir o Guadiana 
vindos de longe 
do mar 

Que os barcos 
voltem a subir o Guadiana 
descarregando à passagem 
todo o trigo 
que o cavalo esbaforido 
chegue à relva, sua cama 
que o fugitivo 
encontre seu porto de abrigo 

Um homem corre na noite 
é uma imagem banal 
esgueirado de holofotes 
com a estrada que atravessa 
se confunde 
com o breu o seu corpo 
se confunde 
e se passa num muro branco 
fica branco como a cal 
tal e qual 
o camaleão 
é uma imagem banal 

Um homem luta contra o sangue 
que derrama 
em que cama 
terá ele o seu repouso? 
está ansioso? e como não? 
não estaria quem pisasse 
um desconhecido chão? 
não estaria de garganta afogueada 
quem por nada 
assim fugisse? 
quem por tudo suplicasse 
dai-me forças, dá-te forças 
a ti próprio te confias 
dá-te alento, dá-te tempo 
dá-te dias 
sobrevive de agonias 
respirando sobrevives 
sobrevive 

Um homem vive 
contra o sangue 
que derrama 
e diz: vale a pena? 

Que os barcos 
voltem a subir o Guadiana ... 

Um homem corre na noite 
é uma imagem banal 
porque insiste? porque teima? 
não há pânico na rua 
não há fogo no quintal 
labaredas? só nas camas 
dos amantes 
já distantes 
chegam ruídos, utopias 
quanto vale uma utopia? 
vale tudo? quanto vale? 
um homem corre na noite 
é uma imagem banal 

O que fez o fugitivo? porque corre? 
se está vivo é porque morre 
se morrer é porque o matam 
se o matarem ,será justo? 
inocentes são os culpados de outros crimes 
de que culpa? 
de paixão? de inconsciência? 
será justo ou não será 
desbaratar a inocência 
tão a custo conquistada? 
porque corre o fugitivo nessa estrada? 

E agora para para agora 
o homem para 
para agora para agora 
será que sente que chegou a sua hora? 

É impossível 
não é possível 
correr tanto 
e pensar tão 
lucidamente 
o coração 
não aguenta 
a cabeça também não 
porque tenta 
ultrapassar os seus limites? 
provavelmente 
é por vontade de viver 
(quente quente ...) 
que ultrapassa os seus limites 
«Estamos quites!» 
diz para o seu coração 
«Ainda não, ainda não ... 
sentes que valeu a pena? 
se te obrigam a fugir 
mais te obrigam 
a chegar junto de ti 
valeu a pena?»

sérgio godinho


para ouvir aos ouvidos e deixar o arrepio crescer pela quantidade vezes que já tivemos de fugir e chegar mais junto a nós

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