1.7.09

escritos de rajada

"vamos amigos aqui à volta desta fogueira dar-nos todos como se estivessemos sozinhos e nada houvesse a prender-nos. vamos amigos nesta noite que finda dizer todas as palavras que ficaram engasgadas encravadas empancadas. vamos todos amigos abrir as portas as janelas as varandas e criar a nossa aldeia. vamos todos vamos. vamos mostrar que é possível a paz a alegria a coragem a vida. vamos amigos. façamos este último esforço. vamos. começo eu."

o orador contou então do arrepio que sentiu quando em plena caminhada se viu sem água sem comida e já sem força. contou então do medo que sentiu quando todos pareciam esmorecer no fim de três dias a tentar levantar o telhado. contou então das tristezas que passou com o seu coração despedaçado naquela tarde em que a rapariga loura lhe negou um beijo um abraço um carinho (a rapariga loura corou). contou que tivera sido ele a esgotar a bilha de gás à força de precisar de luz para acabar de escrever. foi interrompido pelo homem de bigode que houvera ficado com a responsabilidade de a repor e de como lhe doeram os pés por tê-la ido buscar montanha abaixo montanha acima. e da raiva que sentiu e de como partiria a cara da besta que o fez fazer aquele caminho. a voz era elevada e a face encarnada. o orador pediu desculpa pela cobardia do momento e ofereceu a cara. o homem do bigode usou-a mesmo. para um murro. um só murro. a rapariga do casaco vermelho tipo canadiana levantou-se e amparou o orador e falou da noite em que dormiu fora da casa porque alguém fechara a porta e se esquecera de que ela tinha descido a buscar o pão que faltava para a manhã seguinte. disse da pena que tinha de não ter vontade nem possibilidade de partir também ela a cara a alguém porque todos todos eram responsáveis por essa noite e do mal que lhe soubera aquele pão que ainda assim partilhou com todos. fez-se um silêncio. a menina das botas pediu licença para quebrar o silêncio mas que tinha de tirar lá do fundo do pensamento todas as discussões tidas cegamente com o rapaz das jardineiras e o homem do bigode sobre a melhor maneira de carregar os jerricãs de água para o cimento. e que sim lhe houvera custado trazê-los todos os dias e que não não tivera sido uma tarefa até gloriosa e que sim a arrogância a martelara nas costas nos braços nas pernas no orgulho. falava apressada. o orador riu abraçando-a e lembrando as sandes que haviam feito juntos para levar a quem estava já no trabalho das últimas telhas. o baixinho brincou com as estafetas feitas para que essas sandes chegassem lá acima intactas. a rapariga loura confessou o ciúme sentido por não ter sido ela a fazer as sandes e que o beijo pedido estava ainda por dar. o orador corou. e sorriu. o baixinho levantou-se e falou de pé porque queria mesmo ser ouvido sobre a decisão que tomara de partir no meio da jornada montanha abaixo para ver o jogo da final. de como a culpa o acompanhara no caminho e de como não era o jogo que o fazia descer mas a necessidade de estar sozinho e controlar um pouco dos seus dias. a rapariga loura invejou-lhe a coragem de ter ido por ter sentido também ela vontade de ir por aí e sentir-se a si mesma. que em vários momentos se deixou ir pelo grupo e que assim se sentira a viver uma vida que não era a sua e que sentira o seu lugar desnorteado e que nem sabia bem do espaço que tinha sido o seu porque definitivamente não o soubera criar e que as palavras foram ficando cada vez mais engasgadas e que o cansaço lhe pesava e que tudo o que queria para descansar era o abraço do orador. se ainda tinha para lho dar? o orador sorriu e docemente abriu-lhe os braços. no seu colo a rapariga loura respirou fundo. o rapaz das jardineiras puxou a guitarra e soou o que força é essa que trazes nos braços e o homem do bigode não pode deixar de sorrir contagiando as vozes. a menina das botas fechou os olhos e assim ficaram noite dentro cantando.