quando o mês de março entra no calendário lembro-me sempre da minha avó por ter sido o mês em que ela morreu. hoje, numa conferência, o Daniel Sampaio falava da importância da relação avós-netos e a minha cabeça encheu-se de recordações que me trouxeram uma saudade imensa. então, hoje, passados cinco anos, voltei a ler uma carta que me escrevi a mim, no dia em que ela morreu, para ter a certeza de que não me iria nunca esquecer de como éramos. de como ela era e eu a via. uma carta também para ela, na ânsia de não me estar a despedir.
hoje tenho saudades dela.
"14 Março 2004
Foi hoje embora a minha avó.
Com 94 anos.
Foi juntar-se à terra. Foi juntar-se a Deus.
Entendia-se muito bem com eles.
Da terra sabia muitos segredos. Com Deus tinha um entendimento tão grande que soube esperar e, finalmente, pedir-he que a juntasse a Si - começava já a ficar zangada com Ele por nunca mais a ouvir.
A minha avó sabia muitas coisas. Sabia provérbios que batiam sempre certo com a realidade. Sabia ler. Sabia o tempo que ia fazer. Sabia falar com as plantas. Sabia como fazer as galinhas sentirem-se umas rainhas.
A minha avó limpava os caixotes de lixo e contava as moscas que matava.
A minha avó rezava alto e pedia protecção para nós todos e para os seus amigos.
A minha avó levava-me à missa e, quando não pode mais ir, ouvia-a cada vez mais alto na televisão, porque os seus ouvidos ouviam cada vez menos.
A minha avó sabia muitas palavras e dizia "bou buer um bucuado d´áuga".
A minha avó sabia todos os medicamentos que tinha que tomar e era ela quem os contava e trazia para a mesa.
Fez de mim sua cabeleireira quando, ao não poder mais fazer o seu carrapito sozinha, me pediu que lhe cortasse o cabelo curtinho.
Fez de mim seu boletim informativo quando deixou de conseguir ler o jornal e me pedia que o fizesse.
A minha avó teve graças para dizer até ao último momento.
A minha avó era muito teimosa, muito casmurra. Viveu até ao fim. Tratou de si até o coração lhe pedir "Bina, deixa-me descansar."
Sabia o que tinha deixado por fazer e disse algumas vezes que "o milho ficou por debulhar em casa da Tia Clara."
A minha avó ralhava, era intransigente, mandona. Tinha muitas zangas com ela. Ouvia conversas. Criticava os meus amigos. Falava das horas a que eu chegava. Mas eu sei que gostava muito de mim e eu sei que também gostava muito dela. Pena os silêncios. Pena as horas não aproveitadas. Os dias não aproveitados.
A minha avó ensinou-me a coragem de viver e de lutar e só hoje é que eu percebi. Nos seus últimos dias no hospital, recusou-se a ter mais tubos e máscaras. "Eu estou melhor sem isto" - dizia ela da máscara. Amarraram-lhe as mãos e os pés. À minha avó, que quis andar sempre e deixar o tempo passar no seu corpo. Mas, na falta da sua integridade, tenho a certeza que ela decidiu a sua hora, como sempre decidiu tudo na sua vida.
Viveu os últimos anos em casa sem enlouquecer. Sempre ligada à vida terrena e aos dias que passavam.
Despedi-me dela no dia 9 de março.
Disse-me "Vai com Deus" e, pela primeira vez, parecendo que adivinhava, respondi-lhe "Fique com Deus, avó"
Vem amanhã.
Não viu o Lombomeão pela última vez. A sua terra. A sua vida.
A minha avó foi embora num dia de sol quentinho. Num daqueles dias em que ela gostava de se sentar no pátio e ficar a olhar, por baixo do seu chapéu, o quintal a que se dedicou sempre.
Apertou-me a mão com força a última vez que a vi e procurou o meu olhar. Explicou-me exactamente o que se deve fazer para que as plantas não passem sede. E ficou a olhar para mim. Despedimo-nos assim com o olhar uma na outra.
Avozinha, descansa agora em paz. Não sejas tão teimosa aí desse lado. Trata bem as pessoas como tu sabes fazer. Conversa com a Alzira e manda-lhe beijos meus. Não te zangues por não te termos contado do tio João... queríamos ter-te mais um bocadinho.
Prometo-te, avó, que vou tentar tratar da nossa família.
Um beijo muito grande até à eternidade."
A minha avó limpava os caixotes de lixo e contava as moscas que matava.
A minha avó rezava alto e pedia protecção para nós todos e para os seus amigos.
A minha avó levava-me à missa e, quando não pode mais ir, ouvia-a cada vez mais alto na televisão, porque os seus ouvidos ouviam cada vez menos.
A minha avó sabia muitas palavras e dizia "bou buer um bucuado d´áuga".
A minha avó sabia todos os medicamentos que tinha que tomar e era ela quem os contava e trazia para a mesa.
Fez de mim sua cabeleireira quando, ao não poder mais fazer o seu carrapito sozinha, me pediu que lhe cortasse o cabelo curtinho.
Fez de mim seu boletim informativo quando deixou de conseguir ler o jornal e me pedia que o fizesse.
A minha avó teve graças para dizer até ao último momento.
A minha avó era muito teimosa, muito casmurra. Viveu até ao fim. Tratou de si até o coração lhe pedir "Bina, deixa-me descansar."
Sabia o que tinha deixado por fazer e disse algumas vezes que "o milho ficou por debulhar em casa da Tia Clara."
A minha avó ralhava, era intransigente, mandona. Tinha muitas zangas com ela. Ouvia conversas. Criticava os meus amigos. Falava das horas a que eu chegava. Mas eu sei que gostava muito de mim e eu sei que também gostava muito dela. Pena os silêncios. Pena as horas não aproveitadas. Os dias não aproveitados.
A minha avó ensinou-me a coragem de viver e de lutar e só hoje é que eu percebi. Nos seus últimos dias no hospital, recusou-se a ter mais tubos e máscaras. "Eu estou melhor sem isto" - dizia ela da máscara. Amarraram-lhe as mãos e os pés. À minha avó, que quis andar sempre e deixar o tempo passar no seu corpo. Mas, na falta da sua integridade, tenho a certeza que ela decidiu a sua hora, como sempre decidiu tudo na sua vida.
Viveu os últimos anos em casa sem enlouquecer. Sempre ligada à vida terrena e aos dias que passavam.
Despedi-me dela no dia 9 de março.
Disse-me "Vai com Deus" e, pela primeira vez, parecendo que adivinhava, respondi-lhe "Fique com Deus, avó"
Vem amanhã.
Não viu o Lombomeão pela última vez. A sua terra. A sua vida.
A minha avó foi embora num dia de sol quentinho. Num daqueles dias em que ela gostava de se sentar no pátio e ficar a olhar, por baixo do seu chapéu, o quintal a que se dedicou sempre.
Apertou-me a mão com força a última vez que a vi e procurou o meu olhar. Explicou-me exactamente o que se deve fazer para que as plantas não passem sede. E ficou a olhar para mim. Despedimo-nos assim com o olhar uma na outra.
Avozinha, descansa agora em paz. Não sejas tão teimosa aí desse lado. Trata bem as pessoas como tu sabes fazer. Conversa com a Alzira e manda-lhe beijos meus. Não te zangues por não te termos contado do tio João... queríamos ter-te mais um bocadinho.
Prometo-te, avó, que vou tentar tratar da nossa família.
Um beijo muito grande até à eternidade."
3 comentários:
Andas a encher os meus dias de palavras bonitas, que me arrepiam e me fazem ter saudades tuas...as ultimas foram enviadas por mensagem, que li sorrateiramente no meio de uma aula que estava a dar e que me fizeram ficar de novo bem disposta. Os alunos agradeceram e eu também!
Sim, eu também tenho saudades tuas e a carolina, mesmo sem saber, também...
sem nada para dizer. porque os silêncios tambem são momentos de partilha. Março para mim é o mês em que R. nasceu. Bjs
oh...
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