da minha vida fazem parte muitas crianças. aquelas com quem trabalho todos os dias, aquelas com quem já trabalhei, os primos, os "sobrinhos", aquelas que encontro por aí, a minha própria infância cheia de outras crianças. faz parte dessa vida de criança uma vontade louca de movimento. de correr. de descobrir o que existe por aí . de fazer experiências. de ir, aos poucos, saindo do colo e desatar a andar e a ver. faz parte dessa vida o "fugir", o que querer saber o que está para além, mesmo que alguém tenha dito para não ir. faz parte a curiosidade. faz parte não querer andar sempre ao pé dos pais e ir ver o que está na outra prateleira do supermercado. e faz parte da vida dos adultos que as têm consigo usar o corpo - braços, pernas, tronco, cabeça, voz - para as fazer voltar quando é necessário. para encorajar as descobertas. para as fazer sentir que, mesmo indo mais além, onde não queriam que elas fossem, o seu corpo está sempre lá para as receber. faz parte uma confiança que vai nascendo, que se vai conquistando, que ambos os mundos estão lá. vai-se mais além mas não se foge. deixa-se ir, mas não se desliga. uma distância certa entre os corpos.
como é que um braço ou uma voz não chegam para passear com uma criança?
numa livraria de um centro comercial, um fina senhora passeava hoje a sua filha como quem passeia o seu cão. o meu vizinho do segundo andar tem uma trela fisionomicamente igual à que a menina trazia à volta do tronco. os meus olhos não conseguiam largar aquela imagem. uma trela... não sei se é este o termo usado para aquele objecto que ligava a senhora à menina, mas é o termo que consigo usar por ter um vizinho que usa um objecto igual para o seu cão. quando a menina se voltou de costas, apareceu a marca que produziu o objecto. pré-natal. a famosa marca de produtos para a infância.
a minha cabeça veio embora com essa imagem gravada. uma imensidão de sentimentos revoltos. a certeza de que o corpo tem de chegar para esta educação de passear com os filhos. com os filhos. com as crianças. não se passeiam as crianças. passeia-se com elas. dá-se-lhes as mãos. dá-se-lhes o colo. dá-se o corpo. dá-se-lhes a oportunidade de sentir que é bom tocar nos outros e senti-los por perto. dá-se-lhes a certeza que não importa onde estejam, é seguro, porque também lá estamos - com os nossos braços para as salvar de perigos, com a nossa voz para as chamar se forem longe demais.
não resisti a procurar pré-natal no google. um site muito bem organizado com imensos artigos sobre a infância que, com certeza, hão-de ajudar muitas mães em apuros. não encontrei as trelas, mas encontrei a
filosofia. deu-me voltas ao estômago pensar que uma cambada de gente anda a ter reuniões para decidir que o melhor para solucionar os problemas das mães que não conseguem passear com os seus filhos é criar um objecto que as faça passeá-los como suas donas.
a pré-natal esteve em baixa.
aquela senhora esteve baixíssima.
e eu agradeci muito ter nascido na província e terem-me deixado brincar na rua, ir sozinha da escola para a hora de almoço. terem passeado comigo.
os tempos talvez estejam diferentes, mas havemos de lutar para podermos continuar a passear com as crianças.